segunda-feira, 4 de novembro de 2013

RENASCER EM MARRAKECH


(CLIQUE NA SETA PARA OUVIR ENQUANTO LÊ
LEIA DEVAGAR... PENSE NO QUE FOR LENDO)
(Handel - Sarabande)

"A arte de viajar é uma arte de admirar, uma arte de amar. É ir em peregrinação, participando intensamente de coisas, de fatos, de vidas com as quais nos correspondemos desde sempre e para sempre. É estar constantemente emocionado - e nem sempre alegre, mas, ao contrário, muitas vezes triste, de um sofrimento sem fim, porque a solidariedade humana custa, a cada um de nós, algum profundo despedaçamento."
(Cecília Meireles, na crônica "Uma hora em San Gimignano") 

     Imagine-se renascendo, encarando tudo pela primeira vez. Mas, com uma grande diferença: tendo a capacidade de observar, de raciocinar e de se submeter a transformações. 

     Pois foi assim que se colocou o escritor Elias Canetti*, conforme conta em seu livro de crônicas de viagem intitulado "As vozes de Marrakech"**. 

     Sem conhecer a língua, os costumes, os valores, a cultura; e ainda sem ter lido previamente manuais, guias, roteiros de viagens ou reportagens, ele foi parar em Marrakech, no Marrocos. Foi para lá com o intuito de observar e conhecer o efeito de uma realidade sobre si mesmo. E lá se instalou por algum tempo. 

(Mapa de Marrocos, noroeste da África - localização de Marrakech - http://www.quadrodemedalhas.com/olimpiadas/marrocos-jogos-olimpicos.htm)

     Em Marrakech caminhou pelas ruas, praças, becos e mercados. Mesmo que sujeito à incomunicabilidade, ele conta seus passeios por Djema el-Fna - uma grande praça local. 


(Djema el-Fna - fonte: http://www.voyagesphotosmanu.com/jemaa_el_fna_nacht.html)


     Ali, dentre muitas outras coisas, ele foi atraído pelos grunhidos constantes que ouvia de um "excluído" em meio a uma praça movimentada e barulhenta; deteve-se demoradamente diante de uma mulher que falava do alto de uma janela para uma multidão indiferente às suas palavras; parou diante de um cego para observá-lo mastigar um bagaço de laranja; e ouviu algo parecido com uma benção sendo proferido por um mendigo, também cego, que colocara uma moeda na boca para adivinhar seu valor.

(Canetti em Marrakech, em 1954
fonte: http://hupomnemata.blogspot.com.br/2009/08/as-vozes-de-marrakech-de-elias-canetti.html)

     Em uma das crônicas conta que sentiu-se ridículo ao caminhar por um cemitério onde nada se elevava acima do solo - simplesmente porque não havia ali como devanear. E concluiu esse raciocínio comparando aquele cemitério com cemitérios em outras partes do mundo onde há muitas coisas vivas - plantas, pássaros etc  - que garantem a alegria dos que vivem - pois que dentre tantos mortos, "sente-se reanimado e fortalecido" [com as manifestações de vida], diz ele.

     Engraçado que, enquanto lia essa crônica, lembrei-me de uma seringueira de tronco enorme bem em frente ao cemitério de minha terra natal. Talvez ela, especificamente naquele local, por capricho da natureza, sirva para dar vida aos pensamentos de quem a observa...

(O tronco e as raízes da seringueira - fonte: arq. pessoal)

     E quem se deixa expor a tanta coisa nova, na condição de observador, sente também que tem necessidade de um tempo consigo mesmo - necessidade que, na crônica "O silêncio na casa e o vazio dos terraços", Canetti admite ter.

     Analisando as experiências do Canetti no Marrocos, fico pensando em como eu as teria vivido. Gosto de ficar atento aos contornos e à arquitetura de prédios; de criar uma certa cumplicidade com os lugares; de pensar nas pessoas que passam, nos seus tipos, e no que nos transmitem ao simplesmente passar. Tudo isso sem me preocupar com o tempo. Gosto também de fazer anotações para, depois, estando só comigo mesmo, poder lê-las. Por isso penso que passaria um bom período nas ruas e nos lugares movimentados, e outro período pensando e fazendo comparações desses lugares com os que conheço.

     Imagino o quanto observar e compreender pode reordenar prioridades em nossas vidas. "Viajar é sempre uma auto descoberta", diz Michel Laub na apresentação do livro do Canetti. Mas viajar quando há o encontro com "o outro" é um renascer - acrescento.

     Da leitura das crônicas do Canetti, percebi que sua atenção esteve o tempo todo voltada para as coisas simples e primárias: sons, pequenos gestos e manifestações humanas. 

     Com isso em mente, guardei do livro a mensagem da necessidade que temos em manter um certo distanciamento dos modelos culturais que adquirimos ao longo da vida para podermos compreender sem julgar. Acredito que somente desprovidos de tais modelos - que são verdadeiros bloqueios - estamos prontos para descobrir as pessoas e as diferentes visões de mundo que nos surgem. E é a partir daí que ocorrem as aberturas para a aceitação do "outro"... para a (re)avaliação de nossas próprias convicções, para as redescobertas, e, consequentemente, para o nosso próprio renascimento.

____________________________
* Elias Canetti (1905-1994) - escritor búlgaro, premio Nobel de Literatura em 1981.   
** Canetti, Elias. As vozes de Marrakech. São Paulo: Cosac Naify, 2006 (Ed. original Carl Hanser Verlag, 1968)

Um comentário:

  1. Prezado Elias, a propósito de suas impressões sobre as Crônicas de Elias Canetti em sua viagem a Marrocos, gostaria de agradecer, como sempre, pelo presente que recebo, assim como vários de seus bons amigos, através de suas palavras e pelo refinado (como sempre) fundo musical escolhido. Mas, do que disse, me fez recordar e gostaria de lembra-lo (porque, é quase certo que conheça) de algumas linhas de um poeta perfeitamente alfabetizado em inglês, mas que se tornou um dos maiores em nossa língua portuguesa.
    “Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são. (...) A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”. Fernando Pessoa

    ResponderExcluir