quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

"POIS É, PRÁ QUÊ?"


(CLIQUE PARA OUVIR)
MPB-4 - "Pois é, prá quê?", do Sidney Muller


     Quando ouço "Pois é, prá quê?", fico com a impressão de estar passivamente folheando um jornal. A letra traz cenas do cotidiano e inquietações humanas que, de tão comuns, apesar de intensas, não pintando novos quadros, mantêm vivos aqueles que me foram pintados décadas atrás. Passa o tempo, são desenvolvidas novas tecnologias, mas o homem continua o mesmo - eu continuo o mesmo. E isso me angustia.

     De alguma forma essa música mexe comigo. 

     Quando a ouço, na interpretação do MPB-4, sinto, no peito, um aperto que não sei descrever. Talvez seja pela sensação de angústia, de descaso, de conformismo, que o MPB-4 consegue transmitir em cada estrofe. Pois tudo isso ocorre ao mesmo tempo em que a vida vai passando e o desejo de transformar vai ficando adormecido. Essa indiferença, aliada à luta acomodada na "revolta latente", é o que incomoda.

     Quando ouço "Pois é, prá quê?" me lembro do seu autor - o Sidney Miller - e da sua história. Eu ainda era menino. Ele surgiu como compositor, envolvido em festivais; compôs trilhas sonoras para peças teatrais e cinema. Lembro-me também - e especialmente - dos paralelos que foram traçados entre ele e o Chico Buarque, no início da carreira de ambos. 

     Ouço a música e me entrego à "revolta latente" estampada nos primeiros anos de compositor do seu autor; termino por assistir, ressentido, a descrença por ele assumida no final de sua vida.

(Sidney Miller - fonte: http://www.famososquepartiram.com/2012/09/sidney-miller.html)

     Tudo isso vai se diluindo no meu pensamento à medida que, entrando pelo meu coração, a música me consome por inteiro e se desvanece...  na fumaça de um cigarro que não fumo.


"Pois é, prá quê?"

O automóvel corre, a lembrança morre
O suor escorre e molha a calçada
A verdade na rua, a verdade no povo
A mulher toda nua, mas nada de novo
A revolta latente que ninguém vê
E nem sabe se sente, pois é, prá quê?

O imposto, a conta, o bazar barato
O relógio aponta o momento exato
Da morte incerta, a gravata enforca
O sapato aperta, o país exporta
E na minha porta ninguém quer ver
Uma sombra morta, pois é, prá quê?

Que rapaz é esse? que estranho canto
Seu rosto é santo, seu canto é tudo
Saiu do nada, da dor fingida
Desceu a estrada, subiu na vida
A menina aflita, ele não quer ver
A guitarra excita, pois é, prá quê?

A fome, a doença, o esporte, a gincana
A praia compensa o trabalho, a semana
O chopp, o cinema, o amor que atenua
Um tiro no peito, o sangue na rua
A fome, a doença, não sei mais porque
Que noite, que lua, meu bem, prá quê?

O patrão sustenta, o café, o almoço
O jornal comenta, um rapaz tão moço
O calor aumenta, a família cresce
O cientista inventa, uma flor que parece
A razão mais segura prá ninguém saber
De outra flor que tortura...

No fim do mundo tem um tesouro
Quem for primeiro carrega o ouro
A vida passa no meu cigarro
Quem tem mais pressa que arranje um carro
Prá andar ligeiro sem ter porquê
Sem ter prá onde, pois é, prá quê?
Pois é, prá quê? Pois é, prá que?
Pois é...

2 comentários:

  1. Simplesmente DILACERANTE.

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  2. Quem tem mais pressa... que arrange uma nave que se valha de uma dobra especial... pessimista de crença, mas torço que em ao menos em talvez outro universo... lá não exista um "pra quê"

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